sexta-feira, 15 de fevereiro de 2008

A revolta dos ácaros

A gente fica mal acostumado quando passa um bom pedaço da vida dormindo acompanhado. Aí, um certo dia, acontece a descompanhia. Você então é acometido de um mal moderno denominado solitariuns solteirus est, aí meu amigo, é um tal de agarrar o travesseiro, de fazer carinho na almofada, procurar a Catherine Zeta-Jones debaixo do cobertor e encontrar simplesmente aquele lençol embolado. Mas, noite passada eu me dei conta que essa solidão não passa de grossa balela.

Depois de muito tempo insone, quando aproveito para escrever aqui neste hospício virtual, na noite passada consegui sem ajuda da velha e sensata maracujina, dormir o meu sono da beleza. Desta vez, nem os meus próprios roncos me despertavam. Que maravilha, roncava, babava e resfolegava sem ninguém para me cutucar.

Pause: cutucar pode ser um problema, mas existe coisa pior do que mulher com o pé gelado, e que te encosta quando você já está dormindo? Juro que me dá medo. Me sinto naquele filme “A mão”, onde a tal mão, decepada, fria, verde e impiedosa persegue e assassina todos os personagens do filme.

Play: Contudo, despertei na alta madrugada. Acendi o abajour, e procurei o som que me libertou dos braços de Morfeu. Não vi nada e apaguei a luz. O cochicho aumentava. Acendi novamente e juro que me lembrei do Gilliard. Aquele cantor que Deus, em sua infinita sabedoria, nos abençoou com o ostracismo.

“A pulga e o percevejo fizeram a combinação.
Fizeram uma serenata debaixo do meu colchão.
Torce e retorce, procuro mas não vejo,
Não sei se era pulga ou se era um percevejo”.

Não era possível! O som vinha do centro da minha cama. Desta vez, além do abajour, contei com o auxílio luxuoso do lustre e de todas as dicróicas que a maldita decoração nos obriga e instalar nos indefectíveis rebaixos de gesso. Peguei uma lupa, meu sobretudo, um cachimbo e um violino, Esquece, essa imagem de Sherlock Holmes não combinava em nada com o meu pijama esmolambado. Mas a lupa tinha. Apurei os ouvidos e escutei claramente:
- Fome, fome, fome!!!
Parecia a Madrugada dos Mortos. Era isso mesmo. O meu colchão devia estar mal alimentado. O seu interior roncava como o estômago de um leão famélico procurando uma presa na escuridão.
- Fome, fome, fome!!!
Pensei em ligar para o Patrus Ananias (aliás nome de parente do Tio Patinhas) do PT e inscrever o meu colchão no Fome Zero. Quem sabe parte das doações que fez a Gisele Bündchen pudessem ser encaminhadas para o meu colchão. Preocupado com a saúde das molas encapsuladas e da espuma densidade 45, eu perguntei a ele, com o respeito que se deve ter a um amigo que você dorme em cima, companheiro de tantos momentos gososos e outros gasosos:
- Amigo Ortobom, o que posso fazer eu para matar essa fome que te consome?
- Ô viado, que porra é essa de Ortobom? Abre o seu olho e mais respeito com sua majestade!
- Ortobom, não sabia eu que você era o rei dos colchões?
- Puta que pariu, pega essa merda desta lupa e olha direito.
Foi aí que consegui vislumbrar de onde vinha o burburinho. Centrei a luz no meio da cama, e lá estava. Perfilados em linhas e colunas, liderados por um general, eles se mostraram. Um exército de ácaros. Pareciam os 300 de Esparta, prontos para enfrentar Xerxes no desfiladeiro das Termópilas. Neste caso Eu.
- Qual a razão de tal animosidade? Perguntei.
- Fome, fome, fome - responderam todos, uníssonos.
- Mas qual a razão para esta fome toda?
Neste momento, um deles, supostamente o líder, se aproximou e se apresentou.
- Amigo Zan. Eu sou Ícaro, o rei dos Ácaros. Aqui estamos há quase 6 anos, e convivíamos gordos, felizes e satisfeitos com esse meio-ambiente que nos foi dado. Aqui nossos filhos cresceram e aprenderam a degustação das peles e sucos naturais provenientes do seu corpo e o da sua companheira. Nos banqueteávamos noite após noite, com as iguarias oriundas do roça-roça. Entretanto, a nossa musa nos abandonou, e levou com elas suas apetitosas peles mortas. Com isso, a nossa ração diária diminuiu pela metade. Você, mais velho e menos saboroso, passou a tomar banhos toda noite e com isso desperdiçar o nosso pão de cada dia. Hoje, temos que nos contentar com os cabelos que se desprendem em quantidades babilônicas de sua cabeça. O problema é que nossa dieta, a base de cabelos, está criando uma revolta no mundo ácaro. Você sabe melhor do que eu, que cabelo no dente só traz problema. Por isso a razão desta revolta.

Eu, pasmo e incrédulo, escutei pacientemente toda a argumentação de Ícaro, afinal, mesmo invisíveis aos meus olhos, aquelas criaturas eram meus fiéis companheiros. Com eles eu dividia o meu leito. Com eles eu dormia toda noite e sonhava com aquela que sempre será o meu sonho. Alguma providência deveria ser tomada. Aquelas criaturinhas comiam os meus restos. E gostavam. Eu era gostoso para alguem, mesmo que fossem ácaros. Eu não poderia deixa-los a míngua.

Então, um impulso incontrolável me levou ao banheiro. Lá, escondida entre os shampoos, condicionadores e cotonetes, estava ela. A salvação do reino ácaro. A pedra-pomes. Agarrei aquela pedra e rapidamente voltei para a cama. Os meus menores amigos tinham que se alimentar. Posicionei-me sobre aquele exército e freneticamente me pus a ralar a sola dos meus pés. O farelo que caia sobre o mundo acariano era como o maná que alimentou os judeus na sua fuga do Egito. Eles se fartaram, recolheram o excesso em farnéis e sumiram nas profundezas do colchão. Me senti feliz e realizado, como um ministro de posse de um cartão corporativo comprando pastel de tapioca para a plebe ignara.
A partir daquele dia, a ralação e esfoliação do meu corpo se tornaram obrigatórias. Tenho muito que agradecer aos meus ácaros pela companhia que eles me proporcionam. Afinal, quem mais se habilita?

Um comentário:

Anônimo disse...

Muito bom...rsrsrs...não sei porque adoro pedra-pomes, aliás, acho que me encantei com ela com uma personagem da Zulmira Ribeiro, que usava pedra-pomes...rsrsrs. Texto fluido, divertido, bom de ler! Parabéns!
Keila